Tem que lutar, não se abater

Tem que lutar, não se abater

27 out, 2011 - Por

Para os mais pragmáticos, o futebol se divide entre duas categorias: a dos que vencem e a dos que fracassam. O futebol amador se divide de maneira semelhante: existem aqueles que foram reprovados em peneiras e não se tornaram profissionais, aqueles que buscam as peneiras para se profissionalizarem e os que ainda serão reprovados. Não há muito para onde escapar: quase todos que jogam futebol em nível amador já estiveram ou estarão de frente com o fracasso. E quem tá na linha de frente não pode amarelar.

Talvez essa história de quases seja o que dá certo charme a essa modalidade do esporte. Participam dos campeonatos amadores trupes de “fracassados”, que não obstante tenham sido reprovados em uma ou, normalmente, várias seleções para fazerem o que mais gostam e viverem disso, continuam jogando, sem grandes ressentimentos. Ao menos dentro de campo. Na final da Copa Vivo 2011, no Calabetão, um torcedor da ADBTN me viu com a câmera em mãos, fotografando o jogo, e veio conversar comigo sobre seu passado como centroavante matador, quando teve experiências na base do Bahia.

Alto e ainda corpulento, muito parecido ao ator e cantor Tony Tornado, o torcedor, com cerca de 50 anos, vestido com uma regata vermelha forte e um chapéu panamá marrom, não economizava ao falar de seus dotes no passado: fazia gol de todos os jeitos, chutava com as duas pernas, ganhava dos zagueiros no corpo e era bom com a cabeça. Por causa de seu pé tamanho 44, era chamado de Sapatão. Era um gênio da grande área. Uma espécie de Adriano (em sua grande fase, lá por 2005) da década de 1970. Ou melhor, comparando à sua época, um Serginho Chulapa com mais corpo e mais qualidades.

Por que, então, nunca havia jogado entre os profissionais? “Aí só pagando, rapaz. Tem muita artimanha”, se defende. Para “Tony Tornado”, futebol profissional deixou, já há muito tempo, de significar paixão e mérito. Ao denunciar as propinas que o impediram, segundo ele, de fazer parte do grupo do Bahia que dominou o cenário baiano nas décadas de 70 e 80, o torcedor não conta nenhuma novidade. Categorias de base são, até hoje, um lugar em que a ilegalidade corre solta e não é raro que, além de favorecimento a determinados atletas e suborno, aconteçam casos de pedofilia – estes, raramente denunciados, já que o assunto é tabu. Muitos jogadores comentam sobre métodos esquisitos e pouco claros para a escolha de outros atletas em peneiras, e, sem meias palavras, não se mostram contentes com as sujeiras do profissionalismo. Rogério e Wesley, da ADBTN, não escondem a raiva ao dizerem que não tiveram chances em Bahia, Vitória e, mais precisamente, no Real Salvador porque preferiram “filhinhos de papai, que chegavam ao treino de carro”. Linha de Passe, filme de Walter Salles, não deixa de lado essas facetas apontadas por “Tony” e pelos jovens da ADBTN.

Para aqueles que ainda tentam chegar lá, o caminho parece tenebroso. E é. As histórias são desestimulantes, mas não há muito a fazer senão treinar e tentar muito. Muitas vezes. Um exemplo clássico é o lateral direito Cafu, que venceu duas Copas do Mundo pela seleção brasileira: antes de se tornar profissional, foi reprovado em mais de uma dezena de peneiras, até ingressar nos juvenis do São Paulo e dar início a uma carreira vitoriosa. O jovem atacante Pelezinho, de 16 anos, está quase desistindo de tentar seguir em frente nas categorias de base do Bahia e não tem ido aos treinos.

Mesmo tendo sido artilheiro da Copa Vivo pela ADBTN, com cinco gols, o staff técnico do clube não consegue se convencer muito por sua estrutura física, considerada fora dos padrões: ele tem 1,50m e pesa menos de 50 quilos. Correm boatos à boca miúda pelo Arenoso que ele precisa de um pouco mais de incentivo da família, de uma base familiar tão sólida quanto Marquinhos, filho de Dona Chica que está em São Paulo tentando virar profissional e, após aparecer na Portuguesa, está se transferindo para o Corinthians. Hoje, ao invés de estudar, Pelezinho trabalha como gesseiro – como seu irmão Rogério – para ajudar a complementar a renda da família, e não nega um gole de cerveja nos fins de semana, mesmo que sua idade não permita. Seu olhar vazio, sua quietude e, quando abre a boca, um discurso impreciso, revelam uma certa desesperança, muito própria de quem é tão jovem e não vê muitas possibilidades de realização de um sonho.

As histórias tristes, ou até mesmo trágicas, como a de Fabio Leon, atual técnico do Grêmio e goleiro na juventude. Em um misto de lesão, morte na família e depressão, ele largou a carreira, mesmo vislumbrando uma transferência internacional (leia mais aqui), e começou a dar a volta por cima poucos anos depois, “com a ajuda da família e de membros da Igreja Universal do Reino de Deus”, explica. Hoje, tem feito grande trabalho no futebol feminino e já chama a atenção de clubes profissionais – acumula o comando técnico do Grêmio com o do time sub-17 do Galícia e o cargo de axuiliar técnico da equipe feminina do Vitória.

Acabar com um sonho antigo não é, certamente, algo muito simples de se aceitar e lidar e é preciso muita fibra para poder não se amargurar demais. Às vezes, uma mera incompatibilidade com os métodos de treinamento de um técnico são um obstáculo que pode ser resolvido. Foi o que aconteceu com as jogadoras Índia, Vanessinha e Kayllane, que foram aprovadas na peneira para o time de futebol feminino do Vitória, mas, como não se convenceram pelos métodos do treinador Barbosinha, acabaram emprestadas ao Dias D’Ávila para a disputa do campeonato baiano de futebol feminino.

Alguns, porém, preferem levar na esportiva a fata de sucesso na tentativa de passar para o elenco profissional. Talvez já imaginassem que não teriam grande futuro como profissionais. Daniel Conceição, diretor e massagista do Grêmio de Lauro de Freitas, tentou ser atacante no Bahia, mas não deu certo. “Logo mudei de posição e virei goleiro. Estava engordando”, diz com um sorriso afável por baixo de seu bigode grisalho. Já Milton Rodrigues, presidente da Fefa, a federação estadual de futebol amador, é mais enfático. “Desde pequeno, com uns 13, 14 anos, já organizava campeonatos lá em Pirajá. Gostava de organizar as coisas. Sempre fui cartola”, orgulha-se, como se já tivesse nascido com o dom da cartolagem.

O que importa, de fato, é que o futebol amador consegue realizar o que se propõe: ser praticado por pessoas que realmente são apaixonadas pelo esporte e o praticam por puro prazer. Quando estão em campo ou vivenciando esporte fora das quatro linhas, nenhum deles lembra das sujeiras que compõem parte do cenário do futebol profissional, tão distante às vezes da (apenas) aparente falta de seriedade que ronda o amadorismo ou mesmo os babas entre amigos. Nestes momentos, eles e elas atingem o estado de graça a que o jogo se propõe: entram em cena o divertimento e a vontade de superar o adversário e não qualquer pensamento sobre a burocracia e a hipocrisia dos dirigentes do mundo profissional. Não há polissemia: amador tem significado unívoco e universalmente entendido por quem pratica o esporte ou simplesmente dispende alguns segundos para dar uma olhadinha em uma partida que está acontecendo logo ali, em um campo de terra.


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