A história de um sobrevivente

A história de um sobrevivente

20 maio, 2015 - Por

Salvador talvez seja a metrópole brasileira com o maior número de campos de futebol per capita. Embora os mais de 150 terrenos destinados à prática do esporte pareçam muitos, a capital baiana já teve muito mais. Com o crescimento da cidade, a abertura de novas vias e a forte especulação imobiliária, alguns destes espaços de lazer acabaram desaparecendo ou diminuindo. Alguns sobrevivem bravamente, como o Campo do Arenoso.

No terreno acidentado da região, localizada entre a Estrada das Barreiras e a Avenida Paralela, há muitos campos. Dividindo espaço com as casas nas encostas e ladeiras e com roças e hortas, nove terrões estão espalhados entre o Arenoso e o bairro vizinho, Beiru – ou Tancredo Neves, como preferirem. O maior deles, que leva o nome da primeira localidade citada, é administrado pelo comerciante Jaílson Andrade, dono de um bar vizinho à quadra e membro atuante da associação desportiva da comunidade.

Seu Jaílson conta que, apesar de o campo ter sobrevivido até hoje e ainda ser um dos maiores da cidade, ele não resistiu ao crescimento do Arenoso e diminuiu. “Não existem mais campos de várzea como antigamente, com 110, 115 metros [de comprimento] não. Hoje os bairros crescem e os campos diminuem. Esse aqui, mesmo, ia até lá”, diz, apontando um conjunto de casas que crescem por trás das traves. “O nosso ainda é um dos maiores de Salvador, tem 90 metros de comprimento”, pondera.

Seu Jaílson demarca o campo antes de uma partida do campeonato local (Foto: Nelson Oliveira)

Seu Jaílson demarca o campo antes de uma partida do campeonato local (Foto: Nelson Oliveira)

O Campo do Arenoso sobrevive, mas já foi bastante ameaçado de desaparecer. Como diversos outros campos na cidade, esteve cobiçado pela iniciativa privada, mas como é cercado por casas, sempre há movimento em seu entorno. O acesso também não é dos mais fáceis: as ruas estreitas dificultam bastante a entrada de veículos pesados – que poderiam vir a ser utilizados para revirar a terra do campo antes de cercá-lo. Hoje o campo é registrado junto à Prefeitura, que de vez em quando realiza reformas nele, como obras de gradeamento e iluminação. Apesar de tudo, tem moradores no bairro que acham que o espaço da quadra poderia ser usado para outros fins.

“Uns acham que o campo deveria virar uma praça. Outros dizem que poderia ser o local do fim de linha dos ônibus. Cada um tem uma opinião diferente. Mas eu penso dessa forma: se o campo virar uma praça, ele será tão bom para a população? Eu acho que não”, opina Jaílson.

Seu Jaílson não embasou a sua ideia em nenhum tipo de teoria urbanística ou sociológica, mas parece estar certo. Segundo Jeferson Bacellar, sociólogo que estuda futebol na Bahia, praças costumam se degradar e não serem utilizadas pela população. Em entrevista ao programa Cidade em Campo, que trata de futebol amador soteropolitano, ele explica o seu ponto de vista.

“As praças são abandonadas e a população deixa de ir. Elas começam a ficar perigosas com o tempo e ninguém mais vai. Quando você faz uma praça, você precisa criar equipamentos para atrair as pessoas e também tem que dar manutenção. Com o futebol, não. O futebol junta muita gente. Jovens, adultos… ali se estabelecem amizades, as pessoas passam a se conhecer”, defende.

É isto que o Campo do Arenoso tem feito há cerca de 50 anos. Quando, nos anos 1960, algumas famílias chegaram na região, uma das primeiras atitudes foi criar o campo como espaço de lazer. Entre barracos e casas de alvenaria que iam sendo construídas no meio da floresta que existia ali, um campo de futebol não poderia faltar.

“Esse campo aqui foi feito por uma das famílias que fundaram o bairro. É a família de Cara de Vaca (risos)”, diz. Como é, Seu Jaílsom? “É, é de vaca, mesmo. Eles chegaram aqui com enxadas, capinaram e limparam a área toda. Aí surgiu o campo”, explica.

Cara de Vaca, o patrono do "A Bruxa" (Foto: Nelson Oliveira)

Cara de Vaca, o patrono do “A Bruxa” (Foto: Nelson Oliveira)

Cara de Vaca, um senhor de quase 70 anos e que mais parece um menino, de tão jovial, adora dar entrevista. Ele não para de falar, contar suas histórias e é o centro de atenção das conversas dos babas de domingo. Quase um patriarca, que nem sempre fala sobre o tema que lhe é apresentado, mas que não deixa de falar sobre tudo ao mesmo tempo. “Minha família é uma das mais velhas daqui. Se você me perguntar quem morou aqui, quem nasceu e se criou aqui, os antigos donos de roça daqui do Beiru… eu sei tudo”, garante, antes de ir comandar a batucada e reclamar com os jogadores d’A Bruxa, do qual é patrono.

Desde que Cara de Vaca e sua família fundaram o campo, muito mudou. O mato e as onças que rondavam o lugar deram lugar às casas de milhares de famílias, que dão duro para sobreviver – muitas delas apostam em seus filhos como futuros jogadores em times profissionais.

Afinal, naquele campo, hoje é disputado um dos mais fortes campeonatos de futebol de várzea de Salvador, e os babas são duros. Craques do amadorismo soteropolitano desfilam por ali, em times como A Bruxa, Esperança, Leg Press, Primos, Real Bahia e Cruzeiro, referências locais. No entanto, se muito mudou nos últimos anos, uma coisa ainda permanece: é o campinho que ilumina o Arenoso e é ele que é o ponto de encontro da comunidade. Se depender da dedicação de Seu Jaílson e Cara de Vaca, isso continuará acontecendo por muitos e muitos anos.


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