Fábrica de sonhos

Fábrica de sonhos

18 jul, 2014 - Por

Pelé é considerado por muitos o melhor jogador de futebol de todos os tempos. Campeão de três copas do mundo com a Seleção Brasileira, Pelé pisou em gramados dos principais estádios do mundo, como o Maracanã, o Azteca (México), Rasunda (Suécia), enquanto foi jogador. E nessas andanças pelo mundo afora, o Rei esteve em um campo, que nem de longe se parece com os estádios pomposos que jogou enquanto profissional, e mudou a vida de quem o frequenta.

Era uma quarta-feira, 18 de abril de 2012, um dia como outro qualquer, e fazia sol na Rua Abelardo Andrade de Carvalho, na Boca do Rio – Salvador. No local, um dos principais pontos de lazer da comunidade é o campo da feira, como é chamada pelos moradores a Arena Boca do Rio, próxima à antiga sede de praia do Bahia. O campo abriga jogos durante todos os dias da semana, além de ser o local de treinamento de uma escolinha de futebol para crianças e adolescentes.

Pelé foi convidado para gravar uma propaganda de televisão para a operadora de telefonia celular “Vivo” e, para isso, passaria por alguns pontos da capital baiana. Como os locais não foram divulgados para a população, as pessoas não se prepararam para receber o Rei. E um dos locais escolhidos foi exatamente o campo da feira. Além disso, ele ainda passou por pontos turísticos como o Farol da Barra e o Elevador Lacerda, além do Restaurante Amado, na avenida Contorno.

Apesar de a população não ter sido alertada sobre a ilustre visita de Pelé, no campo da feira sua presença era esperada pelo menos por uma pessoa. Antônio Carlos da Silva, 54, mais conhecido como Esquerdinha, é treinador da equipe de futebol Villas, que treina no campo há mais de 13 anos. Ele esperava ansiosamente a visita de Pelé.

Semanas antes da visita para gravação da propaganda, o campo passou por reformas e alterou a rotinas de treinos da equipe de Esquerdinha. “Havia tempo que não faziam uma reforma. Então, perguntei aos responsáveis e me disseram que Pelé estaria aqui. No início achei que era brincadeira, só acreditei de verdade quando vi as câmeras chegarem no dia da gravação”, contou.

Foto: Leonardo Pastor

Foto: Leonardo Pastor

Pelé passou cerca de 1h no local e bateu uma bola com peladeiros que “pegam o baba” no campo. “Primeiro ele gravou e depois parou para falar com o pessoal e até bateu uma bolinha com a gente. Quando as pessoas viram que era Pelé, começaram a se aglomerar no alambrado, o trânsito ficou congestionado, os carros que passavam na orla começaram a parar”, lembrou Esquerdinha.

O encontro com o “Rei” foi tão emocionante para Esquerdinha que ele criou um perfil no Facebook apenas para postar as fotos da presença de Pelé no local. A única data de atualização do perfil foi o dia de gravação da propaganda.

Ele conta que Pelé chegou a bater uma bolinha com os garotos da equipe. “Ele deu uma pausa nas gravações para jogar com a molecada. Conversei bastante com ele, falei do projeto e ele se interessou muito. Deixou contatos dele e disse que eu poderia entrar em contato para levar jogadores daqui para o Santos”, relatou Esquerdinha.

Depois do contato, ele relata que quatro garotos da escolinha já fizeram testes no Santos e um deles passou um período de quatro meses treinando na equipe paulista, mas não foi aproveitado. “Pelé pediu que eu indicasse quatro meninos daqui e foi o que fiz. Alguns meses depois da vinda dele, recebi um e-mail do Santos convidando os meninos. Espero que essa parceria possa continuar”, afirmou o treinador.

Entre os garotos que já passaram pelo comando de Esquerdinha estão o ex-zagueiro do Vitória Victor Ramos e o meia Gabriel, que começou nas categorias de base do Vitória e foi para o Cruzeiro e hoje atua no Macaé, do Rio de Janeiro. “Fora que muitos saem daqui e vão tentar a vida em outros estados, mesmo que não nas equipes grandes”. Questionado se considera sua escolinha uma fábrica de craques, ele é modesto ao responder: “Não, não. É apenas uma fábrica de sonhos”.

Foto: Leonardo Pastor

Foto: Leonardo Pastor

Rotina de treinos

Passados mais de dois anos após a presença de Pelé no campo da feira, a rotina está inalterada. O local que há dois anos era chamado de “o campo que Pelé pisou” agora voltou a ser o campo da feira, um centro de formação de jovens atletas. É lá que Esquerdinha comanda o Villas, que conta com 35 aprendizes, entre 7 e 17 anos. Os treinamentos ocorre de terça à sexta-feira, sempre no turno vespertino.

Durante a manhã, o treinador trabalha numa cooperativa de eventos, no Centro de Convenções. É de onde ele tira o sustento, pois o trabalho na escolinha não rende lucro, segundo conta. “Peço aos pais que contribuam com quanto puderem por mês, até R$ 20. É com esse dinheiro que eu compro bolas, uniformes e chuteiras para aqueles que não podem pagar. Mas poucos pais contribuem”, relata.

As dificuldades resultantes da falta de investimento são grandes. Em setembro do ano passado, a equipe deixou de participar da Copa Coca-Cola – torneio disputado na Arena Boca do Rio de futebol sub-15 – por não ter dinheiro para comprar uniformes novos. “Não conseguimos nenhum patrocínio e o valor pago pelos pais não deu para pagar camisas e calções”, conta.

Mesmo com as dificuldades, faça chuva ou faça sol, a rotina de treinamentos não é alterada. Os trabalhos começam por volta das 14h, com alongamentos comandados pelo próprio Esquerdinha. Ele, inclusive, além de treinador, exerce as funções de preparador físico, médico, psicólogo e até de pedagogo do time.

A metodologia de trabalho do treinador ainda incluem trabalhos físicos e treinamentos coletivos, além de cobranças de pênaltis e faltas e jogadas ensaiadas. “São crianças e adolescentes, estão com o corpo em formação. Então, não exijo muito. Os treinamentos são mais leves. Para os mais antigos, vou aumentando o nível”, explica ele.

Esquerdinha chegou a jogar profissionalmente e atuou no Galícia, mas com passagem apagada. Era lateral-esquerdo, como a própria alcunha que carrega já sugere, e gostava de jogar de maneira mais ofensiva, apoiando o ataque. “Atuei em muitos times amadores de Salvador. Futebol sempre foi minha grande paixão”, conta, sem conseguir conter a emoção que brota dos olhos.

Esquerdinha conta que, após a passagem de Pelé, os jogadores do Villas têm tido mais oportunidades para testes. Ele diz que continua mantendo contato com a equipe paulista e, pelo menos quatro atletas por semestre fazem teste no Peixe. Além disso, mensalmente ele leva jovens para fazerem teste no Bahia e no Vitória.

A paixão é tanta que hoje ele trabalha para ajudar garotos a alcançarem o sonho de muitos pequenos brasileiros de serem jogadores profissionais. A missão é árdua, por vezes ingrata, mas ele não desiste. “Muitos ficam pelo caminho, desistem ou não têm oportunidades. Outros se desviam do caminho certo e vão para o mundo das drogas. Mas ver um moleque desse virando profissional é uma coisa que não tem preço”, enfatiza.

Foto: Leonardo Pastor

Foto: Leonardo Pastor

O campo

O autônomo José Carlos Brito, 50, mora na Boca do Rio desde que nasceu. Foi em meados da década de 1970 que ele viu o campo da feira nascer. Ele atuou em equipes amadoras do bairro, como o Boca Juniors.

Brita lembra que origem do campo vem de garotos como ele que buscavam lazer na comunidade. “Era uma época em que todos falavam na seleção brasileira de 1970. Isso incentivava os garotos a jogar bola”, diz. “Antes, o lugar que era o campo era tomado por água do mar. Com o passar dos anos, o mar foi recuando e foi ali que começamos a jogar. Começamos a chamar de campo da feira porque, ao lado, funcionava uma feirinha”, relata.

Com a criação campo, ele diz que muitas equipes surgiram. “Todo domingo tinha campeonato. Mobilizava toda a comunidade. As pessoas saiam de suas casas para assistir aos jogos”, lembra, nostálgico.

Com o passar dos anos, essa paixão diminuiu. “Os times foram acabando. Hoje, o campo é mais utilizado pela comunidade para “pegar o baba” mesmo, nada de muitas competições”, pontua. “Parte da história da minha geração está aqui”, finaliza.


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