Sangue, Suor e Raça

Sangue, Suor e Raça

30 nov, 2011 - Por

Era um sábado tranquilo em Salvador. Naquele 8 de outubro, a temperatura não era das mais altas, mas o bonito sol que estava no céu azul animava qualquer um a sair de casa e ir à praia ou fazer um passeio qualquer. Aquela tarde merecia um jogo de futebol em um estádio lotado, mas Bahia e Vitória jogavam fora de casa justamente naquele fim de semana. No Barradão, entretanto, havia algum movimento. E Daniel Conceição, torcedor do Bahia, planejava passar a tarde inteira ali.

Por incrível que pareça, Daniel não cometia uma incongruência ou, para os mais radicais, uma completa traição. Sua presença ali faz todo sentido quando se sabe que ele tem uma filha que acabou de chegar ao time de futebol feminino do Vitória. Para Daniel, coordenador técnico do Grêmio, foi um pouco frustrante quando Ully confessou ser torcedora do Vitória. Mais frustrante ainda poderia ser financiar todo seu crescimento esportivo para vê-la atuar no Vitória. Quis o destino que ela não se adaptasse aos métodos do rubronegro e fosse emprestada pelo Grêmio ao Bahia. De certa forma, o plácido Daniel, de cerca de 50 anos, sentia que o que havia gastado para manter o time feminino do Grêmio e, consequentemente, Ully, havia ganhado sentido.

Ele, que trabalha com transporte escolar e, por diversas vezes, utilizou seu veículo para levar atletas do tricolor para treinar ou disputar competições pela cidade, se orgulhava mais do que nunca da gasolina que havia queimado para chegar até ali. Sua filha chegava a um patamar que ele queria ter atingido: o de titular no Bahia. O senhor alto, um pouco acima do peso, com bastante pelos no peito, nos braços e nas costas, e, acima de tudo muito tranquilo, sorria timidamente. Seus dentes ficavam um pouco escondidos atrás do volumoso bigode grisalho. Daniel ajudaria Rosana, responsável pela equipe feminina do Bahia, no campeonato baiano, e nem os 10 a 0 que o Bahia levou do São Francisco nas quartas de final tiraria o sorriso do seu rosto.

O que Daniel faz para financiar o futebol amador gremista é a rotina de quase todos os diretores de quipes não-profissionais. Com pouco (ou mesmo sem) apoio de comerciantes locais, o jeito é apostar na sua “brincadeira” e tirar o dinheiro do próprio bolso. “Em alguns meses, quando o trabalho não vai tão bem, a gente tira um pouco de comida da nossa boca e da família para poder sustentar o Grêmio”, diz.

Ao lado de Daniel, investindo na equipes estão o diretor Neguinho e o presidente do clube, José Reis, conhecido por todo o bairro de Vida Nova, onde mora, como Reizinho. Reizinho é um homem de estatura média, e é um moreno escuro, muito queimado pelo sol forte. Seu rosto, um pouco enrugado para sua idade – tem apenas 28 anos – é fruto de muitos dias de trabalho sob o sol escaldante na roça. Era lavrador na infância e ao longo de parte da adolescência, na roça da família em Urolândia, povoado de Campo Formoso, uma cidade distante 31 quilômetros de Senhor do Bonfim, no norte da Bahia. Até o ano passado, Urolândia não havia recebido luz elétrica e telefone. De acordo com Daniel, que conheceu a cidade quando viajou para fazer um favor a Reizinho, no ano passado, Urolândia é tão pequena que o casamento entre primos ainda é uma coisa muito comum. Aos 14 anos, Reizinho se mudou para Salvador e, nos anos 2000, fundou um time chamado Grêmio Mirim, na Fazenda Grande. Quando se mudou para Vida Nova, deu início ao projeto do Grêmio de Lauro de Freitas.

O conheci em uma visita a Vida Nova, quando ele estava disputando um baba. Zagueiro de fôlego, Reizinho não economiza nas subidas ao ataque e marca gols. Versátil e forte, também faz o trabalho de volante, à frente da área no campo society. “Dá pra fazer isso porque o baba é leve”, fala com modéstia. Entre os intervalos dos jogos, respondia a algumas perguntas e dava alguma declaração para a reportagem, além de também se comunicar com Daniel, que o assistia, enquanto esperava para ir buscar sua esposa na Caixa D’Água. Ficou de fora em apenas uma partida, justamente a única que sua equipe perdeu. Quando pegou seu colete de volta, achou que estava mais seco do que quando entregou a seu substituto e reclamou: “Ó pra isso, o cara nem suou…”.

De algum modo, pelo esforço constante, ele fazia a diferença. Assim como na vida das garotas, que financia mesmo com seu pequeno salário de pintor de parede, seja no ramo empresarial ou residencial. Hoje, Reizinho chega a ter funcionários trabalhando para ele, como auxiliares. “Ganho pouco, mas na minha experiência de pintor, sei que só posso assumir um compromisso se eu realmente tiver como cumpri-lo. Se eu não tiver dinheiro para bancar algo, em algum momento, não prometo nada para não deixar ninguém na mão”, diz o presidente, revelando seu código de ética. Apesar de se esforçar muito, Reizinho acha que ainda precisa correr mais atrás de patrocinadores e organizar melhor projetos para convencê-los. O primeiro passo tem sido dado: montar um time forte e competitivo, que esteja sempre em evidência, para que uma marca deseje associar seu nome a ele.

 

Jaílson Andrade, presidente da ADBTN, posa ao lados dos troféus da Copa Vivo, no interior do Bar dos Amigos

No Arenoso, as dificuldades do time da Associação Desportiva do Bairro de Tancredo Neves (ADBTN) são parecidas, embora o objetivo da equipe não seja tão ambicioso quanto o do Grêmio freitense. Jaílson Andrade, líder da associação, pensa em primeiro lugar em dar condições para qus os garotos do bairro não caiam na criminalidade e tenham uma atividade saudável no seu dia a dia.

Nos primeiros contatos telefônicos com Jaílson, me assustei um pouco. Sua voz era muito parecida com a do pai da minha última ex. O sotaque interiorano, bastante sertanejo, anasalado e carregado nos dês e tês, era inconfundível: seu Joílson deveria ser do centro-norte baiano. Natural de Santa Bárbara, Jaílson morou em Feira de Santana, no bairro do Tomba, “na rua da Paquera”, lembra, e está em Salvador há 30 anos. Trabalhou no Clube Bahiano de Tênis, como gandula e aprendeu a jogar tênis em meio à alta sociedade soteropolitana. No entanto, jogava mesmo é na equipe de futebol de salão dos funcionários do clube e passou para o Estrela de Março, que àquela época era profissional, e foi lateral direito do time júnior. Chegou a jogar no famoso e extinto Campo da Graça antes de atuar apenas por equipes amadoras do Arenoso e, por ter engordado um pouco, tornar-se centravante.

O rosto fechado é apenas uma carapuça. Seu Jaílson é uma figura simpática e bastante sorridente. Conta piadas e ri fácil, quando alguém lhe conta algo minimamente curioso ou engraçado. Respeitado pelo bairro, passa dando bom dia ou boa tarde pelas lojinhas das ruelas da comunidade e, vez ou outra, é parado na rua para bater um papo informal com amigos ou receber propostas para a associação. Depois que o entrevistei formalmente, juntamente a quatro jogadores campeões pela ADBTN, me convidou para tomar uma cerveja no seu bar, enquanto jogávamos conversa fora sobre categorias de base, o futebol baiano, os shows dados pelo Barcelona de Messi e o futuro da seleção brasileira.

É através do seu bar que Jaílson consegue sustentar e dar uma ajuda de custo aos jogadores da equipe. De certa forma, quem sustenta a equipe é a comunidade: foi através da cervejinha e das cachaças que os jogadores de dominó e a vizinhança tomam no Bar dos Amigos que Jaílson pode construir o time campeão deste ano. A facilidade para fazer amizades, de fato, parece ser o forte do senhor de quase cinquenta anos e cabelos grisalhos. Quando soube que eu não morava muito longe do Arenoso, logo emendou um convite: “quando tiver um baba aqui, vou lhe telefonar pra você vir jogar, rapaz”! Aceitei, mas meu telefone ainda não recebeu qualquer ligação sua.

Eles dá prá nós que nós é patrão
Sem muitas esperanças com empresários, toda a comunidade do futebol amador busca apoio do poder público. Presidentes de ligas agem junto a prefeitura municipal para que os campos recebam manutenção constante e algun clubes cogitam se articular com parlamentares ligados aos bairros para conseguir benefícios como transportes ou salas para organizarem suas sedes. As próprias entidades de administração do futebol local – a Federação Estadual de Futebol Amador e a Liga de Futebol Municipal de Salvador – tem buscado o apoio de políticos para que secretarias apoiem e financiem o futebol amador.

Hoje, os políticos mais procurados pelas pessoas ligadas ao futebol amador, na busca por apoios, são, obviamente, da situação. Durante toda a apuração, foram citados os nomes de três políticos, todos petistas: a vereadora Vânia Galvão, que tem acrescentado o esporte à sua plataforma política e esteve presente na final da Copa Vivo deste ano; e os deputados federais Rui Costa e Nelson Pellegrino – este último, provável candidato do partido à prefeitura de Salvador nas eleições de 2012. Apenas Edson Nascimento citou o ex-deputado estadual João Bacelar (PTN), atual titular da Secretaria Municipal de Educação, Cultura, Esporte e Lazer. Futebol e política, historicamente, sempre tiveram relações íntimas – nem sempre positivas, como na Espanha, onde a ditadura franquista favorecia o Real Madrid durante parte do século passado.

No Brasil, onde o financiamento estatal para a cultura, através de editais, e também para o esporte, como através de programas de incentivo à formação de novos atletas, não é novidade que políticos utilizem o esporte como trampolim e que equipes aproveitem a proximidade para conseguir concessões. A novidade é que o futebol amador não costuma ser alvo de grandes investimentos dos governos em qualquer esfera. Dessa vez, os tempos são outros: “Aqui nunca teve político, mas em tempos de Copa do Mundo eu não quero ficar descoberto”, diz Milton Rodrigues, presidente da Fefa. O dinheiro não vem para confundir o amor. Tem tudo para auxiliar, mas não custa estar atento para seu destino e seu emprego.


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