Bola pra frente

Bola pra frente

27 nov, 2011 - Por

Milton Rodrigues, presidente da Fefa, sorri: o futebol amador tem ganhado mais destaque na cidade

Todo mundo conhece alguma história de vizinhos que se odeiam e que não necessariamente partem para a briga frente a frente. Quando estão próximos, não chegam a ser cordiais um com o outro, mas se ignoram. Por trás, falam mal e rogam pragas até ficarem roucos. O motivo da briga? Muitas vezes nem mesmo se sabe ou nem é mais recordado, depois de tanto tempo. Uma coisa bem semelhante acontece no futebol amador soteropolitano. A Federação Estadual de Futebol Amador (Fefa) e a Liga de Futebol Municipal de Salvador (LFMS) tem sedes distantes a menos de cem metros, mas divergências que ultrapassam barreiras sem que existam diferenças tão significativas na forma que as duas entidades entendem o futebol amador.

Em primeiro lugar, ambas as entidades consideram que o futebol amador é responsável por estabelecer mudanças significativas na rotina dos bairros e tem implicações sociais e econômicas na vida das pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o esporte. Para o presidente da Fefa, Milton Rodrigues, o Miltão, e para o presidente da LFMS, Edson Nascimento, o Gordurinha, investir no futebol deveria ser visto pelos governantes como política pública. “O futebol amador não é mais amador, é um futebol social. Desde as escolinhas, porque elas tiram as crianças da rua, até no comércio local, que lucra muito nos dias dos jogos. Os políticos dizem que futebol é uma brincadeira, mas é uma brincadeira séria”, argumenta Milton. Enquanto me falava isso, um pouco gritando pelo alto volume do pagode que preenchia o ambiente no intervalo das finais do segundo turno da Copa Vivo, um bar que ficava ao lado do campo do Calabetão estava lotado e havia pelo menos uma grade de cerveja lotada por mesa, por volta das 13 horas. No geral, como mostra o Mapa dos gols, futebol amador é algo disputado pelos bairros mais vulneráveis economicamente. “Barão não se mete com isso, só quer saber de tênis ou joga baba fechado”, vaticina Miltão. De acordo com ele, as únicas ligas de bairros considerados nobres ou de classe média em Salvador estão localizadas no Marback, na Barra e no Centro, mas os presidentes dessas duas últimas não dão notícias há tempos.

Na mesma linha de raciocínio de Milton, Edson lembra que o futebol aquece o comércio dos bairros. “É uma usina geradora de emprego e renda”, diz. “Os vendedores ambulantes, de churrasquinho, os que vendem bebidas nos isopores ou mesmo os donos de bares, esperam ansiosamente pelos jogos, porque, a venda aumenta demais nos dias de jogos”, lembra. A vantagem para parte desses comerciantes é que é na primavera e no verão que normalmente acontecem os campeonatos organizados nos bairros. Como nessa parte do ano chove menos e existem menos chances de que chova e os campos de terra fiquem impróprios para a realização de partida, a possibilidade de atrair público é maior e o consumo de bebidas alcoólicas, água e refrigerantes é maior. O problema, para as equipes, é que raramente essa movimentação no comércio local chega aos próprios clubes. Os diretores, chamados por Miltão de “abnegados”, normalmente precisam arcar com todos os custos e os raros patrocínios são de ocasião e pouco relevantes. É como se os jogadores e técnicos oferecessem um espetáculo e não recebessem por isso mais que o prestígio social em seus bairros e alguns trocados conseguidos a duras penas pelos diretores. No caso dos mais jovens, ainda tem a chance de serem observados por algum empresário.

Mais formal, Edson Nascimento, presidente da LFMS, também comemora: o calendário de atividades da liga é extenso

Os dois falam com conhecimento de causa. Milton, de 57 anos, já está no ramo do amadorismo há 43 anos, tendo atuado como jogador, diretor de time, da liga de Pirajá (onde mora) e, desde 1989, como presidente da federação. “Eu nem era tão ruim de bola, mas preferia ficar na organização, desde os 11 anos, quando tive meu primeiro time, o Real Madrid, e fundei o campo de Pirajá. Sempre fui cartola”, diz. Edson, 48, por sua vez, está no meio desde a adolescência. “Já fiz vários cursos de gestão esportiva e educação física”, fala em seu favor. O presidente da LFMS, inclusive, já esteve ao lado de Milton. Juntos, os dois fundaram a Federação de Clubes e Ligas Amadoras de Futebol de Salvador, a Feclafs, em 1989, e permaneceram até 2004, quando romperam. No mesmo mês de julho daquele ano, Miltão registrou oficialmente a Feclafs – que se tornou Fefa em 2007 – e Gordurinha fundou a LFMS.

Duas histórias, um mesmo objetivo
Em 1989, Salvador tinha campeonatos amadores mais bem organizados. A prática era ainda maior na cidade e os campos destinados à modalidade eram quase todos oficiais. A especulação imobiliária, até aquele período da história da cidade, era menor. No entanto, a cidade crescia e, com isso, espaços que não tinham dono estavam ameaçados. Os campos começaram a desaparecer. Campos antigos, como o da Graça, viraram terreno para alicerçar prédios. Foi nesse cenário que surgiu a Feclafs. “Até hoje a gente vê muitos campos serem destruídos. Nesse ano, perdemos um na Luís Eduardo Magalhães e outro em Canabrava, que ficava em meio a dois condomínios e que uma incorporadora invadiu durante a madrugada, arrancando grandes, refletores e traves. Os moradores estão resistindo e tá num impasse”, conta Milton.

Alguns destes campos, mesmo que tenham recebido beneficiamento da prefeitura, como iluminação e vestiários, correm risco de desaparecer caso os moradores interessados não entrem com um pedido de reconhecimento da desapropriação do terreno, reconhecendo-o como público. “O campo da Boca do Rio, mesmo, está sem luz e sem água. Tão querendo tomar”, especula Sérgio Silva, vice-presidente da Fefa. Milton lamenta ter falado diversas vezes com o presidente das ligas responsáveis pelo campo da Luís Eduardo e de Canabrava e eles não terem se mobilizado para buscar a documentação. “Agora tá aí, perderam o campo…”, lamenta. Mesmo com a especulação imobiliária, Salvador ainda conta com mais de 130 campos, embora muito poucos – menos de 20 – de dimensões oficiais.

Naquela época, pouco após a redemocratização do Brasil, com o fim da ditadura militar, quatro anos antes, o Brasil vivia um momento de tensão política. Na Bahia, Antônio Carlos Magalhães havia perdido sua hegemonia ao ser derrotado nas eleições do governo do estado por Waldir Pires que, por sua vez, havia renunciado para ser vice na chapa do PMDB que tinha Ulysses Guimarães como candidato à presidência da República. Era uma época turbulenta. Na televisão, a organização do futebol amador ganhava espaço e Milton crescia politicamente, ao passo que resistia com os moradores de Pirajá à tomada do campo local. “[Raimundo] Varela ia na televisão e dizia ‘esse homem é poderoso, pode ser vereador, deputado..’, mas eu nunca quis isso”, lembra o presidente da Fefa. Recentemente, Milton divulgou um comunicado para seus contatos de e-mail no qual alerta para que ninguém o confunda com outra pessoa, que está utilizando seu apelido, Miltão, para sair como candidato a vereador.

Sua força como líder de um movimento popular contra o avanço do poder das empresas imobiliárias contra o patrimônio do esporte fazia com que ele chegasse a ser comparado com Lula, candidato a presidência naquela época, em que o PT era tido como um partido da extrema esquerda e ameaça à sociedade capitalista brasileira. Sua retórica é, até hoje, bastante informal e muito parecida com a do ex-presidente. Milton, que trabalhava como químico no Polo Petroquímico de Camaçari, já havia trabalhado no Centro Industrial de Aratu e era ligado ao Sindicato dos Químicos e Petroleiros, era visto como mais uma ameaça sindicalista. Mesmo com a ajuda de Raimundo Rocha Pires, o Pirinho, ex-presidente do Vitória e membro do antigo Conselho Regional de Desportos, cuja sede ficava no Palácio dos Esportes, tentavam boicotar as reuniões da Feclafs.

Naquele momento, já no início dos anos 90, a participação dos presidentes de liga começava a diminuir e seus adversários iam conseguindo atingir seu objetivo. Alguns vereadores assumiram o controle das ligas de bairro e, através do peleguismo, orientavam os presidentes, seus testas de ferro, a não frequentarem as reuniões da Feclafs em troca de bolas ou uniformes. Mas alguns membros não desistiam. “A gente marcava as reuniões em alguns lugares e, chegando lá, as portas estavam fechadas. Direto. Foi aí que o SindiQuímica nos acolheu”.

Não demorou para que ele e sua família passassem a ser ameaçados de morte por um vereador da cidade, que havia colocado um policial desonesto na sua cola, para intimidá-lo, e que ligava frequentemente para fazê-lo desistir à força. Conseguir intimidá-lo era algo difícil. Milton, desde aquela época, era um sujeito muito alto e corpulento. Um armário, como se diz por aí. Mesmo com a simpatia no rosto, quando sorri, e na fala, alguns quilos a mais e utilizando camisas sociais (fechadas ou abertas, com uma camisa da Federação por baixo), sua estrutura muscular é evidente e colocaria medo em qualquer um que desejasse cruzar seu caminho. “Aquela miséria está viva até hoje. Esse cara me perseguiu por uns cinco anos e eu sempre enfrentava ele. Para acabar com tudo, um dia mandei uma carta para o cacique do partido dele, que me conhecia, sabia que eu era um cara direito e acabou o reprimindo”, conta.

O policial que o perseguia fez uma denúncia na justiça comum: acusava Milton Rodrigues de receber dinheiro desviado do governo para manter a Feclafs, uma entidade de utilidade pública. Na acareação entre acusador e réu, as testemunhas de Milton foram mais convincentes e o caso foi arquivado. “Parece até que aquele juiz me conhecia. Ele disse que eu poderia ir para casa e disse para o o policial: ‘se você continuar aí sentado com a sua FA-CEI-RI-CE, eu vou mandar lhe prender. Sente direito, vá, sente direito!’, ele disse na lata. Parecia coisa de Deus, rapaz. Ou foi coisa de Deus. Foi coisa de Deus“, lembra Milton, quase que em transe.

Nos anos 2000, com o apoio do vereador Téo Senna – “sem compromisso político”, afirmam Miltão e o site da Fefa -, a articulação para o registro oficial da federação ganhou um aliado na Câmara de Vereadores da capital. Ele orientou que os membros da Feclafs esperassem um ano eleitoral para registrar”Eu não apoio nenhum candidato diretamente, não me envolvo com política. Se algum ajudar o futebol amador de verdade e estiver interessado, eu até visto a camisa do cara, mas não cegamente”, avisa. Até hoje, nunca se envolveu diretamente com política e apenas trabalha na associação do bairro de Pirajá. Como é ligado a natureza, escolheu um ringtone para seu telefone celular que lembrasse o canto dos passarinhos do Parque São Bartolomeu, que fica próximo a sua casa. Hoje, buscando alguma tranquilidade e em um último esforço, Milton afirma que pretende deixar o cargo de presidente assim que conseguir elaborar um projeto de lei que contemple o esporte. Sérgio Silva, o vice, é vinte anos mais novo que Milton, de 57 anos, e já está mais à frente dos projetos de base da entidade, como as copas Guri e Verão. Deve ser candidato ao cargo nas próximas eleições.

Edson acompanhou a trajetória de Milton, mesmo como coadjuvante. Ao lado dele, participou das lutas pela autonomia do futebol amador e pela manutenção dos campos, até deixar o Palácio dos Esportes em 2004. Afastado do movimento sindical, o morador das Cajazeiras é pequeno empresário do ramo ótico – “temos uma pequena ótica”, diz. Hoje ele deixou a empresa nas mãos do filho e só aparece lá de vez em quando. Sua carreira no futebol começou como presidente da liga de Cajazeiras X e, até hoje, é no populoso bairro (um dos maiores do mundo, com 600 mil habitantes) que realiza boa parte dos seus trabalhos como presidente da Liga.

A plaquinha na porta de ambas as salas parece ter sido encomendada no mesmo lugar: tem as mesmas dimensões, o mesmo azul e as mesmas letrinhas brancas impressas com a mesma fonte. As salas e os prédios onde os dois trabalham, por outro lado, é bastante diferente. Milton Rodrigues despacha em uma sala no térreo do Palácio dos Esportes, prédio mantido pela Superintendência de Desportos da Bahia (Sudesb) e no qual funcionam todas as federações esportivas do estado. O branco da pintura de sua fachada está bem descascado e dá à edificação que foi construída no mesmo local em que funcionava o antigo Teatro São João, destruído por um incêndio, um ar de decadência característico do centro da capital baiana nos dias de hoje.

A sala Osvaldo Alves, onde fica sediada a Fefa, tem cerca de 10 metros quadrados e não tem decoração nas paredes azuis claras, pintadas com tinta desbotada, provavelmente de qualidade duvidosa. Milton trabalha em uma mesa antiga, revestida por fórmica bege sem nada em cima. A seu lado, está um arquivo da mesma cor, com quatro gavetas. Ele serve mais como apoio para um filtro e um garrafão de 20 litros de água, já que boa parte dos papeis da Fefa fica na casa do presidente. Há, ainda, um computador que está sem uso porque não há internet na sala, um ventilador pequeno para refrescar e, ao lado, uma antessala empoeirada que só pode ser acessada através da porta principal, na qual Sérgio Silva despacha, às vezes. Mesmo estando pertinho do mar, alguns mosquitos zunem e importunam.

Gordurinha, por sua vez, trabalha em uma sala um pouco maior, localizada no Edifício Santa Cruz, um prédio discreto, que tem fachada revestida por mármore preto, na Rua do Tesouro, a poucos metros do Palácio dos Esportes. Lá dentro, a escuridão domina: todos os andares são um breu, mesmo de dia, porque há poucas janelas nos corredores e muitas das salas estão desocupadas e fechadas. O elevador, antiquíssimo, não tem porta, mas apenas duas grades de proteção, e só funciona com um ascensorista, que o controla manualmente, apertando um botão que faz o elevador subir, aos solavancos, até o andar desejado. No quinto andar, após subir com pequeníssimas pausas nos quatro andares anteriores, por conta da peculiaridade do ascensor, encontrei a sala da Liga, marcada por um grande logotipo adesivado na porta marrom. Ao contrário do restante do prédio, era muito bem iluminada – apesar do chão escuro, de tacos de madeira – e ventilada, com vista para os bairros da Ajuda e Saúde.

Ao contrário de Milton, Edson trabalhava com um computador relativamente novo e em uma mesa repleta de papeis, livros, uma pequena edição do Novo Testamento, e porta-retratos, todos virados de frente não para os visitantes, mas para o presidente da Liga. Nas paredes, dois banners da liga e um mural de cortiça, com uma série de papeis impressos e recortes de jornal antigos que retratavam eventos e campeonatos realizados pela entidade, e o calendário do ano. Assim como na Fefa, um filtro e um garrafão de água natural faziam parte da constituição da sala.

Se Milton Rodrigues se assemelha a Lula no linguajar e na sua retórica, Edson Nascimento lembra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Professoral, utiliza o método aristotélico de construir um argumento e, no fim, faz uma pergunta retórica, esperando que seu interlocutor o responda e o faça abrir um sorriso em que apenas parte de seus dentes aparecem, mas que, através das lentes de seu óculos de grau, é possível perceber que tem caráter político, irônico e satisfeito. Formal, uma das primeiras coisas que me perguntou ao me ver pessoalmente foi se eu tinha algum cartão. Logo assumi, nas suas palavras, vocativos como “meu caro Nelson” e “meu nobre Nelson”. Desconfiado, Edson perguntou também se mais alguém administrava o site além de mim, já que eu havia citado a Copa Vivo, organizada pela Fefa, como foco de interesse do trabalho. Ele fez um muxoxo quando eu citei a competição e, na hora de se despedir, confessou o que eu já sabia: achava que eu estava mal intencionado e trabalhava na Fefa. Por causa de sua desconfiança, me tratava com alguma ironia: “você ainda precisa de bastante material para esse seu site, não é?” ou “sabe onde fica a Casa D’Italia, não é?” foram algumas das frases que utilizava para se defender.

A divergência entre as duas instituições é, acima de tudo, pragmática – mesmo que Sérgio Silva afirme que Gordurinha deixou a Fefa por ter feito “umas besteiras” na Federação Baiana de Futebol (FBF) e ter brigado com seu presidente, Edvaldo Rodrigues. As duas entidades reconhecem os esforços da outra e seus representantes acreditam que o futebol amador está melhorando também por causa do trabalho da “concorrente”. Gordurinha não acredita que o modelo de federação funcione porque acha que concorre com as federações de futebol profissional. “Esses caras nunca vão querer uma confederação de futebol amador porque é concorrência pra eles”, defende.

Gordurinha pensou em fundar a liga municipal para que pudesse dedicar-se exclusivamente ao futebol amador em Salvador, considerando muito complicado abarcar o estado. “O próprio campeonato intermunicipal, que é amador, é organizado pela FBF, por exemplo. E até hoje não tem nenhum time de Salvador no intermunicipal. Ainda não estamos preparados, mas eles não podem nos impedir, porque é um campeonato entre os municípios”, argumenta. Enquanto a LFMS tem mais trânsito entre setores da Prefeitura, como a Secretaria de Educação, Cultura, Esporte e Lazer (Secult) e entre vereadores, como João Bacellar, a Fefa, por sua vez, além de estar localizada em um prédio mantido pelo governo do estado, tem trânsito na esfera estadual – e Milton tem procurado o apoio, principalmente, de parlamentares petistas.

Hoje, a Fefa é especializada em promover campeonatos de categorias de base, enquanto a LFMS só tem, a depender do ano, um ou dois torneios para novos. A Fefa está realizando um trabalho de recadastramento das escolinhas e das ligas de bairro da cidade com o intuito de mostrar aos políticos do estado a força do futebol amador e barganhar incentivos financeiros do governo federal à modalidade. De acordo com Miltão, existem cerca de 140 ligas amadoras soteropolitanas associadas à Fefa e mais de 1500 times na cidade. É difícil mensurar. “Nós não temos documentos que atestem filiação dos times porque não existem formalidades para que isso aconteça ou que para um deixe de existir. A maioria deles não tem registro oficial”, explica o presidente da Fefa.

O intuito do presidente é fazer com que a Fefa se torne, cada vez mais, uma federação voltada para as categorias de base. “Na verdade, não queremos mais usar o termo ‘amador’. O que nós fazemos é incentivar as categorias de base porque, querendo ou não, todo jogador passa por nós, através das escolinhas”,  explica. De acordo com ele, pessoas de outros estados, como Pernambuco, São Paulo e Rio Grande do Sul, já manifestaram interesse de adotar o modelo da Fefa, a primeira federação do gênero no país, para constituir uma confederação de futebol de basemontar outras federações locais. Miltão sonha alto. “Queremos constituir uma confederação e, depois, divulgar o esporte para outros países. No futuro, se chegarmos a ter 58 países que pratiquem a modalidade, quem sabe a gente não pleiteia uma vaga nas Olimpíadas?”, conta, esperançoso, em sua modesta sala.

O aumento da atenção à base dentro da federação pode provocar mudanças na Copa Vivo. Se, neste ano, as 24 equipes masculinas participantes eram obrigadas a ter pelo menos três atletas com menos de 17 anos – no feminino, como a prática é menor, não houve limitações quanto à idade -, no ano que vem, Milton pensa em montar uma Copa Vivo sub-17 com 24 equipes e outra para adultos, com 12. “Isso deve ser positivo, porque a maior parte dos times de Salvador é de base”, argumenta.

Por outro lado, o calendário de competições da Liga é maior, dura o ano inteiro e contempla um maior número de equipes adultas. Neste ano, a LFMS realizou edições da Taça Brahma e da Copa Coca-Cola – torneios de nível nacional que tiveram sua versão soteropolitana -, além da Copa Cajazeiras, da Copa Rubro-Negra de futebol sub-17 e da Copa Salvador, que começará no dia 10 de dezembro. Ainda em dezembro, no dia 15, a entidade realizará, na Casa D’Italia, uma premiação para os melhores do ano no futebol amador. As dificuldades que a Fefa tem encontrado para encontrar patrocinadores para realizar as competições de base – a Copa Vivo, lembramos, é uma exceção – não são encontradas com a mesma intensidade pela Liga. Neste ano, além de Brahma e Coca-Cola, a cervejaria Schincariol patrocinou a Copa Cajazeiras. “Estamos realizando, em parceria com a Rede Bahia, a Copa Salvador. Brahma e Coca-Cola continuarão conosco e, pro ano que vem, teremos mais alguns parceiros, mas ainda não posso revelar quais”, conta Edson, um tanto misterioso. Os patrocinadores, para as duas federações, precisam arcar com os custos de manutenção dos campos, o que ajuda a melhorar o equipamento esportivo dos bairros, e também os custos de transporte e de vestimenta dos atletas.

Os uniformes, chamados por quem é do meio de padrão, são caros. De acordo com Edson, cada conjunto na Copa Cajazeiras custou 1500 reais para o patrocinador. A Rua do Corpo Santo, no Comércio, é completamente sustentada pelo futebol amador. Lá, encontram-se quase todas as lojas de material esportiva da cidade, dispostas pelos quarteirões do antigo bairro. “Eu desafio você a procurar um dirigiente de qualquer clube profissional lá, de Bahia e Vitória a Galícia ou Ypiranga. Esses caras mandam buscar o material deles fora do estado. Quem sustenta o comércio de artigos esportivos na cidade é o futebol amador”, contesta Edson. Portanto, além de mexer com a economia dos bairros, o esporte também movimenta outros setores da economia local, como o de transporte e material esportivo.

Para organizar melhor o futebol na cidade e fazer com que os clubes e a federação tenham algum controle sobre os jogadores revelados no amadorismo, Milton começou a pensar em vincular os jogadores e estabelecer contratos, para que os empresários não os levem para equipes profissionais gratuitamente. A Fefa está organizando um departamento jurídico, mas até hoje as tentativas não foram bem sucedidas. Os dois advogados que já trabalharam na federação para tentar dar início a isso não resolveram nada. “Burros!”, se revolta Milton. O futebol de Salvador tem chamado atenção até mesmo na Suécia. Um grupo de empresários nórdicos apareceu três vezes na capital com a proposta de realizar uma parceria com vistas para um intercâmbio técnico. Jogadores e árbitros brasileiros iriam para a Suécia para realizar treinamentos, enquanto os suecos fariam o caminho inverso. Isso seria uma porta de entrada também para negociar jogadores.

Se tem gente da Suécia interessada, Milton reclama de certa falta de visão dos presidentes de liga, que não teriam a dimensão do potencial do esporte. A Fefa já realizou cursos de gestão esportiva, em parceria com a Sudesb e a Ufba, oferecidos aos presidentes de liga, mas apenas uma pequena parte deles, “sempre aqueles mesmos, o mais atuantes”, segundo Milton, acabou participando. “O futebol amador precisa ter uma visão empresarial. Os empresários precisam perceber que podem lucrar com os clubes amadores”, complementa Gordurinha. O presidente da Fefa também acha que os clubes brasileiros e baianos fazem muito pouco pelo futebol amador. Com rancor, ele desabafa: “Eles não nos procuram e nem ajudam o futebol amador. É por isso que hoje em dia eu não torço pra ninguém. Torço pro Tancredo Neves, pro São Cristóvão… torço pro meu futebol, pro futebol amador”.

Edson Nascimento também procura colaborar com os clubes, mas não diretamente. Ele é contra o modelo das peneiras, que é uma barreira para muitos atletas. “Eu acho um modelo obsoleto. Em uma peneira, os caras põem os garotos pra jogarem cinco, dez minutos e não dá pra saber se ele é bom ou não. Eu prefiro dar a visibilidade, através dos meus campeonatos, e convido clubes e empresários para assistirem”, diz o presidente, sem fazer muita questão de dispensar os pronomes possessivos e o pronome pessoal reto em primeira pessoa para referir-se aos campeonatos organizados pela Liga.

No final das contas, apesar de, aparentemente, a existência de duas entidades com um objetivo muito parecido provocar estranhamento e até uma diminuição de autoridade das duas, talvez essa espécie de concorrência ideológica seja sadia para o futebol amador na cidade. A vontade de mostrar ao outro que seu modelo é o mais adequado faz com que, no jargão futebolístico, os presidentes deem o sangue para que as competições sejam bem organizadas e tudo saia nos conformes. “Acho muito bom que existam duas entidades em uma cidade tão grande quanto Salvador. Quem ganha com isso é a comunidade”, afirma Edson. Resta que, em primeiro lugar, sejam preservados o interesse público e não a vaidade de qualquer um dos envolvidos.


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